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Uma garfada de linguagem

  • Foto do escritor: Júlia Marquezan
    Júlia Marquezan
  • 6 de jan.
  • 3 min de leitura

Antes de compartilhar o texto desse post, gostaria de dizer que essa foi a primeira produção que escrevi para o meu seminário de formação em psicanálise. Segue o texto, então, que intitulei de "Uma garfada de linguagem":


Começo o processo de escrita desse texto pensando em nada. Ou não pensando em nada. Nada se conecta. Nada. Não tem nada. Então tem algo? Não sei...sigamos.
Minha mãe sempre conta que eu voltava da escola com fome e, por isso, muito irritada. Ela adora contar e recontar uma história muito específica desses momentos: a vez em que eu pedi a ela que passasse em frente a casa de uma amiga no nosso trajeto de volta para casa. Ela não passou. Ela fala que eu fiquei furiosa e chorei o caminho todo, mas que depois da primeira garfada do almoço, aquela brabeza toda se dissipou. “Come que teu mal é fome”, ela me dizia. Bom, sirvamo-nos de um bom prato de comida, então....
Comer não está fechado em seu significado. Me ocorre que não é incomum escutarmos pessoas contanto suas histórias e relacionando-as ao ato de comer. Sexo é um bom - e clássico - exemplo disso. Não apenas quando explicitamente dizemos: “eu quero comer o fulano”, mas também quando dizemos: “nossa, fulano é muito gostoso”. Ainda, comer pode assumir sentidos como consumir, absorver ou devorar, onde “o tempo comeu a tinta das paredes” ou “ele comeu todas as palavras”. Dito isso, a primeira questão que me salta à mente é: quando é que comemos? A resposta imediata é: comemos quando sentimos fome! E o que é fome? Fisiologicamente, fome é uma condição onde o corpo se encontra com falta de nutrientes para a execução de suas funções vitais. Quero ressaltar que não estou me referindo à contextos de insegurança alimentar, relacionada à falta políticas públicas, desemprego, questões econômicas e/ou atravessamentos sociais de diversos gêneros. Sendo assim, pergunto: em que momento sentimos fome? Bom, sentimos fome quando o nosso estômago, então, nos envia um sinal de que está vazio. Mas a gente só come quando o estômago está vazio?
Se paro para pensar nessa afirmação que marcou a minha infância, parece que existe um desconforto nesse sujeito que sente fome. Existe algo que vai ser tamponado por “comer.” A pequena Júlia da história que a minha mãe gosta de contar frustrou-se de não passar em frente a casa da amiga. Então, deve comer. E comer esse prato servido por outros. Não porquê é pequena, mas porque lhe é rotulado dessa forma. Só que há algo importante na frase que a minha mãe fala(va): o MAL é a fome. Sim, pois após as primeiras garfadas a pequena Júlia sentia alívio. Aquele prato de comida tinha o poder de fazer desaparecer o desconforto. Até parece meio óbvio que para matar a fome, a gente coma. No entanto, qual era a fome da pequena Júlia da história? E, inclusive, enquanto escrevia isso que lhes leio, me perguntei: por que tentamos tanto matar a fome? A palavra morde o sentido; mastiga, engole e se apropria. Marca a fome como algo a ser combatido pela pequena Júlia que nada entende. Pois se fome é a falta de nutrientes e só sentimos ela quando nosso estômago está vazio, então a fome é a falta. E se comes por teu mal ser a fome, logo, a falta também é o mal. A fome é a marca da falta. E se falta é mal, não podemos sentir fome. Temos de matá-la.
Quando comecei a escrever esse texto me deparei com a falta. E me desesperei, fiquei braba e chorei. Dei uma garfada e engoli as palavras inteiras, com casca; mantive-as no estômago, indigestas. Não me dei conta de que precisava permanecer de estômago vazio. Pois se a fome é aquilo que nos faz buscar algo para comer, a falta é o que nos faz buscar algo a desejar. Quando não há falta, há tudo. E tudo é muito. Tudo é muito e é inteiro. E também não há como comer algo inteiro, é preciso quebrá-lo, cortá-lo, despedaça-lo, o que seja. Pois algo que é inteiro não falta nada. Já tem o nada. E quando tem o nada, falta nado, falta nadar. Nada é nada e é algo ao mesmo tempo.
Logo já me veio outra frase clássica que muito escutei: a fome ensina a comer. Mas isso já é prato pro texto do ano que vem.

 
 
 

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